Estamos numa paisagem industrial. O asfalto se estende, sujo, inóspito, áspero,
anódino. Restos de objetos imprecisos se espalham no chão criando no âmbito
noturno uma constelação urbana onde alguém flutua como um astronauta perdido na
imensidão industrial. Outros restos se expandem monstruosa e desesperadamente na
verticalidade de um muro. Outros são compilados, carregados, elevados numa vertiginosa
e frágil acrobacia. Outros se sucedem no espaço temporal, numa estética do equívoco
de um difícil e incerto registro videográfico. Outros são extraídos e sublimados em
recortes pintados por fumaça e água. Outros são contidos em livros impossíveis como
se fossem segredos. Em todos os casos esses restos são signos, números, linhas de
divisão e direção que nos orientam em um mapa inverossimilmente afetivo.
Lamonier desenha um complexo entrelaçado de códigos, sinais, vestígios, cicatrizes,
gestos que definem uma linguagem e que delimitam esse território, mas que também
traçam roteiros. Estamos na verdade frente a um auto-retrato cartográfico. Nessa
paisagem, o que seria para nós hostilidade, representa para ele o universo da sua
estória pessoal, o lugar de memória da sua felicidade e da sua infelicidade, da sua
liberdade e da sua condenação, do que lhe é próprio e do lhe é alheio, do que lhe é
precioso e do que lhe é aterrador.
Nos olhamos naquele que está abandonado, extraviado, mas que por uma luminosidade
própria do condenado, ainda nos olha de frente, nos olhos, e nos dá pistas
para ser achado e seguido: luz, fogo, fumaça, mapa. Como se nos encontrássemos no
Hades, Randolpho incorpora o papel do Caronte, ou do Stalker de Tarkovsky, numa
versão pueril que tensiona a graça e a ironia, a delicadeza e a crueza como duas
pontas de uma mesma linha.
Rosa Maria Unda Souki